16 janeiro 2014

Noite Sem Fim. - PARTE 1

Aquela tarde havia sido cansativa. O dia todo havia sido cansativo, para falar a verdade, mas a tarde havia sido especialmente corrida - coisa comum nos finais de semana mas era algo ao qual Kevin ainda tentava se habituar. Tem sido sempre assim desde que começara a trabalhar no mercado do seu tio a pouco mais de um mês. Haviam apenas quatro ''grandes mercados'' por assim dizer, naquela pacata cidade em que vivia, e o mercado do seu tio Fillip era um dos maiores e mais conhecidos pela população da cidade. O Bolichão do velho Fill, era como chamavam os mais íntimos - principalmente os velhotes, clientes a quase cinco décadas. Fillip não mantinha muitos empregados trabalhando consigo; eram apenas cinco, que se revezavam entre o caixa, açougue, organização dos produtos, assistência aos clientes, etc. O quinto empregado era o próprio Kevin, e sua tarefa era chegar lá as seis e trinta da manhã para verificar se estava tudo em ordem, e então preparar-se para abrir o estabelecimento as sete horas, junto de seu tio. Trabalhava o dia inteiro sexta e sábado, pois eram dias em que o mercado precisava de mais um funcionário para dar conta da clientela, e então domingo a tarde reunia-se com o restante do pessoal para fazer a faxina do local e a reposição dos produtos nas prateleiras, tudo sob a supervisão de Fillip, que continuava firme como um guerreiro, apesar dos quase setenta anos. Trabalhar justamente nos finais de semana podia não ser algo agradável para Kevin, mas pelo menos o tio era generoso na hora do pagamento. S$ 400,00 dólares mensais para trabalhar três vezes por semana? Era muito bom. Mas Kevin sabia que o tio o beneficiava. Ele era muito próximo de seu pai, e depois que Norman morreu, Fillip acabou se aproximando mais da família do falecido irmão. A mãe de Kevin, Lisa, era como uma irmã para ele, e o garoto... Fillip considerava como o filho que nunca teve.

Kevin chegou em casa, ergueu a porta da garagem e entrou com sua bicicleta. Havia comprado-a semana passada, quando recebeu o seu primeiro pagamento. Não havia saido barato, mas quando viu a bike na vitrine, precisou leva-la. Era um desses modelos novos com tudo que uma bicicleta foda precisa ter e, além disso, Kevin sempre teve um estranho tipo de ''paixão por bicicletas'', apesar de não coleciona-las(a mãe e o pai nunca deixaram); então assim que comprou a nova, anunciou a antiga em um site de vendas. Ao entrar, viu que o carro não estava na garagem. ''Que estranho a mãe ainda não ter chegado...'' pensou, e então escorou a amada bicicleta na parede. Parou e olhou ao redor por um instante, franzindo as sobrancelhas em desaprovação: a garagem estava uma tremenda bagunça. Ainda haviam algumas caixas de mudança amontoadas em meio a muito pó e outras porcarias. Mas é claro que ele não iria fazer nada a respeito ''Não hoje, pelo menos.'' pensou consigo mesmo,  então deu as costas e saiu, baixou a porta da garagem e a trancou. Ele estava faminto, exausto e perguntando-se porque seu tio não contratava ao menos mais um funcionário; não era barato, ele sabia, mas o mercado estava em ascensão e Fillip não era mais um garotão, como dizia ser. ''Pelo menos posso vadiar de segunda a quinta.'' pensou alto consigo mesmo. Pretendia voltar para a faculdade somente no próximo ano, após juntar uma boa grana.

Kevin observou a rua de sua casa, estava vazia. O Sol já estava baixo, com aquele tom alaranjado no horizonte e algumas casas estavam com as luzes de dentro e de fora acesas - incluindo as luzinhas de Natal - contrastando com o tom laranja e azulado do fim de tarde. Kevin suspirou, subiu os degraus da varanda e entrou em casa.

Ao entrar, acendeu a luz e, sem vontade alguma, apertou o interruptor que ligava as luzes de Natal da casa. Aquele clima natalino não o deixava muito a vontade. Aquela bobagem toda; Kevin nunca conseguiu se sentir parte disso. O motivo era que, em dezembro de 2009, seu pai havia morrido lutando contra as chamas de um incêndio de grande escala, ocorrido nas montanhas de Brook Hills. O corpo de bombeiros da cidade de Brook não estava conseguindo controlar as chamas e pediram socorro as cidades vizinhas. Richard Miller era bombeiro a mais de dez anos e, naquela semana, saiu as pressas de casa, prometendo retornar. Os noticiários locais mantinham a população atualizada e sua mãe estava sempre grudada no sofá acompanhando cada noticia. Quando tudo acabou, foram informadas as mortes de dois bombeiros e um civil. Kevin tinha treze anos naquela época, e a imagem dos companheiros de trabalho de seu pai chegando a sua casa e de sua mãe desesperada chorando, ainda não saíram ao todo de sua cabeça. Talvez jamais saiam. Seu pai morreu tentando salvar a vida do companheiro. Ele morreu como um herói, foi oque disseram. Dia 20 de dezembro faria seis anos da tragédia, e eles comemorariam o Natal com alguns amigos. O tio Fill viria, e parece que o tal de ''Alann com dois N's'' também estaria presente. Kevin ainda não o conhecia pessoalmente, mas a mãe parecia um pouco menos triste nos últimos dias, então talvez ele seja um cara legal.

Kevin abriu a mochila e tirou dela uma caixa de leite, um pote de achocolatado em pó e dois sanduiches prontos que havia trazido consigo do mercado do tio, e em seguida os colocou na mesa da cozinha. Ouviu um barulho distante, como algo caindo. - Mãe! - chamou, ninguém respondeu. ''Mas o carro não esta na garagem...'' Retirou a embalagem plástica de um dos sanduíches e o mordeu. De boca cheia e mastigando, saiu da cozinha, subiu as escadas e foi até o quarto de sua mãe. - Mãe? - chamou de novo, mas ao abrir a porta encontrou o cômodo vazio. A janela do quarto estava aberta e uma brisa entrava por ela. Contornou a cama e foi fecha-la, abaixando-se antes para juntar o porta retratos que havia caido da cômoda. Na foto estava ele, sua mãe, sua vó e o cachorro da vó, Cueca. Foi o próprio Kevin quem deu o nome. Sua mãe e sua vó até quiseram protestar, mas não teve jeito, esse era o nome perfeito. O cachorrinho era branco com manchas escuras, e uma dessas manchas contornava o quadril e se estendia até a metade das coxinhas, lembrando uma cuequinha box; o rabo ainda era todo branco, como se tivesse saido de um furo do tecido. Todos achavam a maior graça. Kevin colocou o porta retratos de volta no seu lugar e ergueu o pulso pra olhar o relógio; já passava das 8 e meia - Tu anda voltando tarde ultimamente hein mãe?... Só espero que esse novo namorado não seja igual o último.

Ao chegar em seu quarto, abriu o notebook e o ligou, mas sem nenhuma vontade de entrar na internet. Sentou-se na cama, ainda terminando de mastigar o ultimo pedaço do sanduíche. Pegou os fones e colocou um reggae pra tocar. Havia uns livros em cima do seu travesseiro, ele os colocou pra um lado e estirou-se de barriga para cima. Deu um longo bocejo e sua visão embaçou. Esfregou os olhos e virou o rosto em direção a janela: já anoitecera lá fora. Deu outro bocejo e seus olhos foram pesando cada vez mais enquanto observava o fraco, porém insistente refletir das luzes de Natal na janela de seu quarto. Adormeceu ao som de Redemption Song, de Bob Marley.


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Kevin acordou assustado e ergueu-se da cama depois de ter ouvido um grito - ou pensar ter ouvido um grito. Esfregou os olhos, com certeza havia sido só um sonho. Voltou a deitar e tirou o celular do bolso da calça. A musica havia automaticamente parado de tocar pra economizar bateria. Com os olhos lacrimejados de sono, olhou a hora e voltou a levantar-se, dessa vez realmente assustado. Eram quase seis horas da manhã! - Merda como foi que dormi tanto!? - Levantou da cama, iluminando o caminho com o celular, pegou sua toalha de banho, jogou-a no ombro e abriu a gaveta de cuecas. Estava muito escuro. Apertou o interruptor de luz, mas a luz não acendeu. ''Que merda, será que a lâmpada queimou?'' Saiu do quarto e tentou acender a luz do corredor, mas ela também não acendeu. - Droga, ótima hora pra faltar luz! - O celular apitou, a bateria estava fraca. ''Droga, essa não.'' Desceu, atravessou a despensa e foi até a porta que levava a garagem, apontando a luz do celular para os degraus da escada. Havia uma lanterna ali em algum lugar. Foi até as prateleiras procurar. Caixas, caixas, caixas, ventilador estragado, teias de aranha, caixas com entulhos... e a lanterna ao lado. - Beleza! - disse e voltou por onde veio. Foi até o banheiro escovar os dentes, lamentando por não conseguir enxergar-se no espelho e amaldiçoando os caras da companhia elétrica. Tomou o banho mais rápido da sua vida - com a água gelada mesmo - vestiu-se, arrumou o cabelo para trás e voltou até a sala, estranhando aquela escuridão toda. Tornou a olhar seu relógio, ele marcava 6:28, já deveria estar clareando lá fora. Foi até a porta, abriu-a e saiu na varanda. Uma brisa gelada o atingiu e ele encolheu os braços. Estava tudo muito escuro e, não havia som algum na rua, oque era ainda mais estranho, pois muita gente sai trabalhar a essa mesma hora. Dois postes piscavam uma luz morta na esquina. Kevin voltou para dentro de casa, fechou a porta e foi até o quarto de sua mãe, ficando surpreso ao ver que ela não havia dormido em casa - ele nem lembrou de perceber se o carro dela estava ou não na garagem. Pegou seu celular para ligar pra ela e ficou pensativo por um instante, quase desistindo, mas decidiu que ligaria. A chamada caiu na caixa postal e as chamadas seguintes terminaram da mesma forma. Já eram 6:46. Ele tentou evitar ao máximo, mas agora estava começando a ficar assustado.

Subiu de novo até seu quarto e vestiu uma jaqueta. Tentou ligar para sua mãe uma ultima vez, mas caiu na caixa postal novamente; isso já estava o deixando bastante preocupado. - Droga mãe, atende... - respirou fundo. - Tudo bem, ela esta bem e... - um grito fez ele se virar imediatamente. Pareceu vir da rua. Kevin deu um pulo até a janela. Uma pessoa cruzou correndo e caiu bem em frente a sua casa. Não dava para ver direito devido a escuridão, mas... parecia ser uma mulher. Kevin podia ouvi-la chorando e pedindo socorro. Estaria ferida ou coisa do tipo? Ele estava prestes a descer para oferecer ajuda, mas algo aconteceu: uma espécie de névoa negra, uma massa ainda mais escura que a própria escuridão noturna foi envolvendo a mulher aos poucos, enquanto ela se arrastava e gritava por socorro. A nuvem negra a cobriu por completo, e os gritos foram abafados, até que não pode se ouvir mais nada. Segundos depois o agressor desapareceu, misturando-se a escuridão, e deixando para trás o corpo imóvel da mulher. Kevin cambaleou para trás, tentando não acreditar no que viu. ''O-O que diabos foi aquilo!?'' Desceu correndo as escadas e observou pela pequena janela da porta. A moça estava caida no mesmo lugar e não havia sinal do agressor. ''Mas oque foi aquilo que aconteceu!? O que era aquela coisa!?'' Kevin estava com medo e não parava de pensar em sua mãe. Por que não atendia o celular?! Meu Deus, será que ela esta bem!?'' Abriu a porta e desceu a varanda, iluminando o caminho com a lanterna; o feixe de luz focando tudo que parecia mover-se, porém, nada realmente se movia. Quando ele chegou perto o suficiente do corpo caído, a luz da lanterna iluminou uma cena de horror: a moça estava extremamente pálida e magra, e em seu rosto caveiroso estava estampava uma expressão de dor e agonia inimagináveis. Seu abdômen e tórax estavam magros e contraídos, como se estivessem vazios, como se... alguma coisa tivesse sugado tudo por dentro...
Kevin colocou a mão na boca e se afastou, tentando não vomitar. Com a mão trêmula, pegou o celular pra ligar pra polícia, mas a bateria havia acabado. - Otimo, mais essa agora! - gritou com raiva, olhando para todos os lados ao dar-se conta de que o agressor poderia estar por perto. ''Seu idiota'', pensou consigo, a luz da lanterna seguindo a direção de seus olhos. O que era isto tudo!? O que estava acontecendo!? Ele estava em choque, a mulher estava morta e ele não sabia oque fazer; até que um barulho chamou sua atenção, fazendo ele se virar assustado. A luz da lanterna iluminou uma lata de lixo que rolava lentamente a calçada. Kevin sentiu-se observado. Ele voltou correndo para dentro de casa e trancou a porta, suor frio escorria-lhe da testa. No fim da rua, aqueles dois postes ainda piscavam fraco, lutando para se manterem acesos, até que ambos estouraram, deixando a rua em completa escuridão.


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